Há muito tempo os celulares deixaram de ser apenas aparelhos para ligações. Multifuncionais, os aparelhos se transformam agora em “carteiras eletrônicas” graças ao desenvolvimento de serviços de pagamentos móveis, os chamados mobile payments, cujas tecnologias autorizam transferência de valores usando o dispositivo móvel. As iniciativas para popularizar esse sistema de pagamento ainda engatinham no Brasil, mas prometem dominar no futuro pelas facilidades. A publicação da Medida Provisória que regulamenta o assunto, a MP 615, em 20 de maio último, deve acelerar o processo.
Para discutir a tendência, o Conselho de Criatividade e Inovação da Federação do Comércio de São Paulo – FecomercioSP organizou o evento Mobile Payment e Marketing. Um dos pontos discutidos no encontro foi a edição da Medida Provisória 615, que definiu que o Banco Central (BC), sob orientação do Conselho Monetário Nacional (CMN), é o órgão que estabelece as regras para os pagamentos móveis no País. “A MP foi muito bem formulada, vai favorecer a inovação nesses sistemas e trará segurança jurídica ao mercado”, disse o presidente do conselho da FecomercioSP, Adolfo Menezes Melito.
Segundo Melito, o uso de dispositivos móveis para pagamentos tem duas forças propulsoras: a mobilidade garantida pelos smartphones e a possibilidade de o sistema oferecer serviços financeiros para pessoas sem conta bancária. Estimativa do instituto Data Popular aponta a existência de 55 milhões de brasileiros adultos sem conta corrente ou poupança, movimentando, apesar disso, perto de R$ 665 bilhões por ano.
O assessor jurídico da FecomercioSP, Luis Antonio Flora, acredita que a MP regulamenta as formas de pagamento de forma pragmática, fazendo com que seja previsto no Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). O Banco Central tem prazo de 180 dias para estabelecer as regras de como funcionará o modelo. “O meio de pagamento já é utilizado e agora haverá regulamentação para as várias instituições envolvidas, permitindo ao órgão regulador agir para garantir a qualidade do serviço ao consumidor”, afirma Flora.
Após a data da publicação, a MP 615 tem 120 dias de validade, período no qual deve ser aprovada pelo Congresso Nacional para seguir em vigor. “Mas ela tem chances seguras de passar. Não vejo qualquer problema técnico ou político. Será um benefício enorme para o mercado e já poderia estar implantado não fossem as amarras dos órgãos reguladores, que agora admitem essa inovação”, explica Melito.
O diretor da PagSeguro Ricardo Dortas ressalta que um eventual excesso de regulamentação será prejudicial diante de riscos de concentração de mercado, o que impediria a inovação, justo um dos pontos que a MP ressalta. “Tenho essas preocupações com as disposições que agora serão feitas pelo Banco Central.” Para Dortas, é comum que pequenas empresas criem novas tecnologias e seria muito ruim, por exemplo, se empreendedores iniciantes precisassem pedir aprovação do BC para começar a operar. “Quem já lidou com o órgão sabe como é difícil e demorado. Isso acabaria com a inovação no mercado.”
A advogada Adriana Bandeira de Mello, do escritório Andrioli, Giacomini, Porto e Cortez, lembra que a regulação no País foi postergada por anos, pois o tema era controverso e o mercado registrava baixo volume de transações. “Por muito tempo foi debatido se empresas de pagamento privado faziam o papel de instituições financeiras, mas a MP deixou claro que essas companhias são prestadoras de serviços, recebendo comissão pelas transações”, analisa.
Além dessa questão, segundo Adriana, a regulação da MP 615 esclarece outro ponto nebuloso: a questão fiscal.
“No mundo, a regulação vem avançando de maneiras distintas, muito pelas especificidades de cada lugar. “Certamente, as legislações necessárias para tornar os pagamentos móveis economicamente viáveis e seguros será diferente em cada país. Na América Latina, por exemplo, já existem exemplos de regulamentações sólidas no México e Peru”, destaca a diretora sênior da consultoria norte-americana Glenbrook, especializada em pagamentos, Elizabeth McQuerry.
Mas nem todas as nações adotaram medidas específicas. Nos Estados Unidos, por exemplo, não existe uma regulamentação especial para os pagamentos móveis, sendo submetidos às leis financeiras e de proteção ao consumidor já existentes. “Esse cenário está funcionando bem, mas ninguém sabe se no futuro precisaremos mudá-lo”, afirma Elizabeth.
Conhecedora dos mercados da América Latina e acompanhando a iniciativa brasileira, ela acredita que a aprovação da MP é um ponto positivo. “O País fez um trabalho extraordinário ao pensar uma estrutura para os pagamentos móveis. Ela proverá uma sólida fundação para desenvolvimento do mercado”, acredita Elizabeth.
O conceito de pagamentos móveis surgiu na década de 90, com uso de SMS para autorizar transações financeiras. Desde então, a tecnologia evoluiu bastante com o surgimento dos smartphones e tablets, permitindo mais funcionalidades aos dispositivos e ao acesso à internet. Com isso, grandes e pequenas empresas passaram a desenvolver uma gama de soluções para os mobile payments usando sistemas como o QR Code (espécie de código de barras), aplicativos de celular e NFC (Near Field Communication), tecnologia que usa chip embutido nos aparelhos para permitir troca de informações por proximidade.
A proliferação de novidades é tanta que até o som vem sendo testado para autorizar as operações, levando as diferentes tecnologias a coexistir e a se adaptar às distintas necessidades e perfis do consumidor. “No futuro, isso permanecerá igual e existirá muita competição pelos clientes conforme os mercados amadurecem. Hoje, estamos apenas começando a definir como a tecnologia irá funcionar. A evolução vai se acelerar nos próximos anos e é difícil saber como consumidores irão adotar os sistemas”, explica Elizabeth.
Com a propagação do sistema de pagamento móvel, a consultoria Gartner estima que neste ano 245 milhões de usuários realizarão US$ 213 bilhões de transações por meio de pagamentos móveis no mundo, ante 200 milhões de usuários e US$ 163 bilhões movimentados em 2012. A expectativa é que o volume atinja 450 milhões de pessoas e US$ 721 bilhões até 2017. O volume pode surpreender em um primeiro momento, mas perde um pouco o brilho quando depara-se com as 7 bilhões de linhas de celulares ativas no mundo, segundo avaliação da União Internacional de Telecomunicações (UIT).
No Brasil, o mercado ainda engatinha. De acordo com a “Pesquisa CIAB FEBRABAN – O Setor Bancário em Números 2013”, o uso do celular para serviços bancários vem crescendo muito, com a realização de 823 milhões de transações em 2012 por esse canal. No entanto, apenas 2,6% dessas ações envolveram movimentação financeira.
Para a especialista norte-americana, o país onde o mercado de pagamentos móveis está mais desenvolvido é o Quênia, na África, no qual milhões de pessoas armazenam dinheiro nas suas contas móveis utilizando um serviço chamado M-Pesa, no qual é necessário apenas um telefone básico com SMS para fazer transferências de dinheiro, pagar contas ou fazer compras. De acordo com dados da operadora do serviço lançado em 2007, a Safaricom, existem cerca de 15 milhões de usuários no país, em uma população total de 44 milhões de habitantes. “Nos Estados Unidos nós não estamos nem perto desse estágio avançado”, completa Elizabeth.
O Brasil também está na “infância” no que se refere à iniciativa das empresas fornecedoras de serviços, com muitas ainda testando programas piloto. Em 2008, uma parceria da Visa, Banco do Brasil, Bradesco, Nokia e CBMP (VisaNet Brasil) lançou no País o programa Visa payWave, que permite utilizar celulares com tecnologia NFC para fazer pagamentos. Desde então, a empresa mantém testes com o sistema, mas ele nunca chegou a atingir escala comercial. “Continuamos com os trabalhos, pois eles fornecem muitas informações e validam premissas para que possamos desenvolver o sistema”, afirma o diretor executivo sênior de produtos da Visa, Percival Jatobá.
Segundo Jatobá, a empresa testa diversas tecnologias há pelo menos 10 anos. “Atualmente, cada companhia está desenvolvendo o seu próprio sistema, o que é normal por ser uma novidade. Mas existem conversas entre bancos, operadores e fabricantes sobre a tecnologia e modelos de negócios com a meta de, no futuro, chegar à interoperabilidade, fundamental para a popularização dos pagamentos móveis”, explica. Este último ponto é importante e está contido no texto da MP, destaca Jatobá. “Essa é uma das razões do sucesso do cartão de crédito, pois sua tecnologia pode ser usada em qualquer lugar do mundo. É algo que temos que perseguir.”
Este ano tem sido especialmente produtivo para parcerias voltadas a desenvolver sistemas, como demonstram os anúncios de empresas do setor. O Itaú Unibanco é uma delas: anunciou investimentos em três iniciativas, em parceria com Redecard, MasterCard e TIM, com foco em QR Card, Mobile Card e tecnologia NFC. “Já estamos experimentando o mobile payment há pelo menos dois anos e agora resolvemos investir mais forte pelo interesse geral e a popularização dos smartphones no País, uma plataforma propícia para os sistemas”, afirma o diretor de cartões do banco, Marcos Magalhães.
Segundo o executivo do Itaú Unibanco, a oferta efetiva do serviço dependerá de vários fatores, como infraestrutura. O programa piloto com tecnologia NFC, por exemplo, envolve apenas cem estabelecimentos. “Existem muitas alternativas tecnológicas e para nós é importante fazer os testes, pois ninguém sabe ainda qual solução será mais aceita pelos consumidores”, completa Marcos Magalhães.